quarta-feira, 13 de abril de 2011

É possível a interpretação extensiva em lei penal incriminadora ?

Essa era uma dúvida que me tirou o sossego, durante muitos anos. Na época da graduação, cheguei a pesquisar em todos os livros de Direito Penal que tive acesso e a conversar com criminalistas, mas era inexistosa uma explicação jurídica pertinente.

O fato de a lei penal, sobretudo, a incriminadora, dizer menos do que deveria dizer, exige que o interprete amplie o seu alcance e significado. Trata-se da "interpretação extensiva" (de lei penal incriminadora).

Mas, será que o uso da interpretação extensiva em lei penal incriminadora viola o princípio da reserva legal? Em outras palavras mais coloquiais: possível ampliar o significado de uma expressão no tipo penal para prejudicar o acusado?

De há muito, discute-se, quanto ao crime de receptação (art. 180, CP), se haveria tipicidade caso a coisa seja, ao invés de "produto de crime", "produto de ato infracional"?

Outrossim, indaga-se, também, quanto ao crime de extorsão mediante sequestro (art. 159, CP), se, ao invés de "sequestro" (cerceamento da liberdade, com possibilidade de locomoção dentro do ambiente), haveria tipicidade com o "cárcere privado" (cerceamento da liberdade, com imobilização da vítima), ou seja "extorsão mediante cárcere privado"?

Vejamos, sem delongas.

Cediço que a hermenêutica privilegia a "mens legis" (vondade da lei) em detrimento da "mens legislatoris" (vontade do legislador). A isso se deve, como se sabe, à enorme diferença entre a "vontade lei" e o texto redigido pelo legislador, justificável, sobretudo, pela dificuldade da língua portuguesa em simbolizar por palavras aquilo que realmente se quer significar.

Deste modo, não fere o princípio da reserva legal o uso da interpretação extensiva em lei penal incriminadora, para se buscar o preciso e exato alcance e significado do texto legal.

Alguém poderia perguntar: "Se é possível em lei penal incriminadora, qual seria o limite da interpretação extensiva?"

O limite da interpretação extensiva é a "vontade da lei" e não o que foi escrito pelo legislador ("vontade do legislador").

A propósito, atualmente, este é o entendimento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. À guisa de ilustração, veja o recente precedente, in verbis:

CONSTITUCIONAL E PENAL. ACESSÓRIOS DE CELULAR APREENDIDOS NO AMBIENTE CARCERÁRIO. FALTA GRAVE CARACTERIZADA. INTELIGÊNCIA AO ART. 50, VII, DA LEI 7.210/84, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 11. 466/2007. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCIPIO DA RESERVA LEGAL. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE.
1. Pratica infração grave, na forma prevista no art. 50, VII, da Lei 7.210/84, com as alterações introduzidas pela Lei 11.466/2007, o condenado à pena privativa de liberdade que é flagrado na posse de acessórios de aparelhos celulares em unidade prisional.
2. A interpretação extensiva no direito penal é vedada apenas naquelas situações em que se identifica um desvirtuamento na mens legis.
3. A punição imposta ao condenado por falta grave acarreta a perda dos dias remidos, conforme previsto no art. 127 da Lei 7.210/84 e na Súmula Vinculante nº 9, e a conseqüente interrupção do lapso exigido para a progressão de regime.
4. Negar provimento ao recurso.
(RHC 106481, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08/02/2011). (g.n.)

A Ministra CÁRMEN LÚCIA, no julgamento acima referido, registrou, ad litteris:

"Não há que se cogitar em afronta aos princípios da reserva legal e da taxatividade, já que a interpretação que o Superior Tribunal de Justiça conferiu não se distancia da 'mens legis'.

Não se criou um novo tipo penal, mas apenas deu ao existente o seu verdadeiro dimensionamento (...).

Essa extensão admitida no acórdão atacado não acrescenta à norma elemento não existentes. Ela apenas revela a intenção do legislador, que não se expressou adequadamente, o que é perfeitamente admissível em Direito penal, como esclarece Heleno Cláudio Fragoso, 'verbis':

'A interpretação extensiva é perfeitamente admissível em relação á lei penal, ao contrário do que afirmavam autores antigos. Nestes casos não falta a disciplina normativa do fato, mas, apenas, uma correta expressão verbal. Há interpretação extensiva quando se aplicado o chamado argumento a fortiori, que são casos nos quais a vontade da lei se aplica com maior razão. É a hipótese do argumento a maiori ad minus (o que é válido para o mais, deve necessariamente prevalecer para o menos) e do argumento a minori ad maius (o que é vedado ao menos é necessariamente no mais). Exemplo deste último argumento: se o Código Penal incrimina a bigamia, logicamente também pune o fato de contrair alguém mais de dois casamentos Manzini)' (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: A NOVA PARTE GERAL. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 86)."

Portanto, conclusivamente, vê-se, com clareza meridiana, que é possível o uso da interpretação extensiva em lei penal incriminadora, desde que não se desvirtue a "vontade da lei".

Antes de finalizar, importante registrar que a doutrina majoritária e a jurisprudência majoritária do STF e a jurisprudência uníssona do STJ, TJDFT e TJRS, todos defendem que é inadmissível o uso da interpretação extensiva em lei penal incriminadora. A justificativa, da maioria, pauta-se no Garantismo Penal.

Abraço.