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HANS WELZEL |
No ano de 2010, o Ministério Público do Estado da Bahia, na 2ª fase do concurso para provimento do cargo de Promotor de Justiça, perguntou, no grupo III (Penal e Processo Penal): "decline, segundo o estágio atual do debate, os mais elucidativos critérios de distinção entre Culpa Conciente e Dolo Eventual, apontando, ainda, as mais importantes implicações práticas da aludida diferenciação na solução dos variados casos penais ". O candidato deveria discorrer em até 50 linhas.
Pois bem.
Essa indagação ("como distinguir, na prática, a culpa consciente do dolo eventual?") sempre me acompanhou, durante toda a Faculdade de Direito. Após ler as doutrinas que tive acesso, analisar julgados e conversar com criminalistas, sinceramente, até aquele momento, tive que me contentar com uma distinção elaborada na teoria, pois, no campo prático, minha visão continuava embaçada e permaneciam sérias dúvidas.
A jurisprudência pátria, sobretudo nos crimes de trânsito, começou a construir critérios e, muito mais do isso, a elaborar fórmulas práticas para julgar, como, por exemplo: haverá dolo eventual, quando houver embriaguez do motorista; mais de uma vítima; excesso de velocidade ou racha; e violência das lesões decorrentes do acidente.
Em todo o Brasil, essa fórmula tem levado Promotores de Justiça a oferecerem denúncia contra agentes por homicídio doloso (dolo eventual) e, via de efeito, a pronúncias ao Tribunal do Júri, para serem julgados por 07 pessoas leigas, que, provavelmente, terão muito mais dificuldades, do que o maior penalista da história da Ciências Penais (Hans Welzel), em diferenciar dolo eventual de culpa consciente.
Essa problemática potencializa-se, ainda mais, na diferença, gritante, de penas entre um homicídio doloso e um homicídio culposo. Para se ter uma idéia, a diferença entre as penas mínimas do dolo eventual (art. 121, §2º, CP - 12 anos) e da culpa consciente (art. 302, do CTB - 02 anos) é de 10 anos.
A doutrina penal, no mundo todo, discute calorosamente sobre os critérios para se diferenciar o dolo eventual da culpa consciente, o que fez com que surgissem dois grupos de teorias: i) as teorias intelectivas, ligadas à "consciência" e; ii) as teorias volitivas, ligadas à "vontade". Isso porque, considerando que o "dolo natural" tem como elementos a consciência e a vontade, uns apegaram-se ao primeiro, enquanto que outros apegaram-se ao segundo.
Dentre as teorias intelectivas, destaca-se a teoria da probabilidade, a qual parte da idéia de que, como é difícil, na prática, provar a "vontade" do agente, no momento da sua conduta, deve-se analisar se o agente prevê o resultado como de muito provável produção e, apesar disso, atua, admitindo ou não essa produção. Esclarece-se: se a probabilidade de ocorrência do resultado é grande e, mesmo assim, o agente continua a atuar, então, haverá dolo eventual. Enquanto que, se a probabilidade de ocorrência do resultado for supérflua, desta feita, haverá a culpa consciente.
Noutro giro, dentre as teorias volitivas, destaca-se a teoria do consentimento, a qual rebate o argumento da teoria da probabilidade, arguindo que, tanto no dolo eventual, quanto na culpa consciente, o agente prevê o resultado e, portanto, tem "consciência" da possibilidade de realização do tipo penal. Com efeito, a diferença somente poderá ser feita no campo da "vontade". Explica-se: no dolo eventual, o agente sabe da possibilidade do resultado ocorrer, mas o aceita, caso venha, realmente, a ocorrer - essa é a conhecida 2ª fórmula de (Reinhard) Frank: "independentemente do que possa acontecer, em qualquer caso, eu atuo" -. De outro lado, haverá culpa consciência se, embora saiba da possibilidade do resultado ocorrer, o agente espera que possa evitá-lo ou confia que ele não ocorra.
Hoje, após verificar, na prática, várias injustiças em casos concretos, vejo que, tanto a "fórmula prática" da jurisprudência, quanto as "teorias" da doutrina, são ineficientes, exigindo que os estudiosos do Direito Penal contemporâneos aperfeiçoem o critério de distinção do dolo eventual da culpa consciente.
Isso não quer dizer que eu defenda os agentes causadores de acidentes de trânsito, tampouco que lhes sejam declarada a impunidade. Definitivamente que não. Mas, quero dizer que os conceitos elementares da teoria do delito não podem ser distorcidos, sobretudo, em face do clamor social. Os critérios devem obedecer a uma racionalidade e não a uma passionalidade, sob pena de se aceitar a indesejável "responsabilidade penal objetiva".
Apesar de apesares... recentíssimamente, no dia 06 de setembro de 2011, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no julgamento do HC 107.801/SP, sob a liderança do voto do Ministro LUIZ FUX, magistralmente, delineou um critério para se diferenciar, na prática, o dolo eventual da culpa consciente, nos crimes de trânsito, ipsis litteris virgulisque:
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Ministro LUIZ FUX |
1. A Classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.
2. O homicídio na forma culposa na direção automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.
3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcóolicas no afã de produzir o resultado morte.
5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que "O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. §1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo. §2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato" (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243).
6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, rel. Min. Moreira Alves, DJ 17/8/1990.
7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).
8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP. (STF. HC 107.801/SP. Rel. Min. Luiz Fux. DJ. 06.09.2011).
Esse recente julgado do STF, conduzido pelo eminente Min. Luiz Fux, preenche um vazio na jurisprudência pátria e ao mesmo tempo contribui para o avanço da dogmática (doutrina) penal. Realmente, faltava alguém que tivesse capacidade intelectual, coragem (de uma decisão impopular aos olhos dos leigos) e equilíbrio, para enfrentar uma das mais difícies questões do Direito Penal: distinção, na prática, do dolo eventual e da culpa consciente.
Agora, de acordo com o recente precedente, nos crimes de trânsito, em todos os casos, presurmir-se-á que se trata de culpa consciente, porque o legislador previu tipo penal específico no art. 302, do Código de Trânsito brasileiro.
Isso quer dizer que, a partir de agora, o STF entende que somente haverá dolo eventual, nos crimes de trânsito provocados por embriaguez, quando houver embriaguez preordenada, ou seja, quando o agente embriagar-se com a finalidade de atropelar e matar ou, embora prevendo este resultado, aceitando-o.
Não configuram mais dolo eventual a embriaguez não acidental (voluntária ou culposa), ou seja, quando o agente embriagou-se, sem a intenção ou consentimento de atropelar e matar. Pelo menos, até surja uma prova lícita e inequívoca durante a persecução penal. Caso contrário, sempre haverá culpa consciente (homicídio culposo - art. 302, inc. V, do Código de Trânsito brasileiro).
Não configuram mais dolo eventual a embriaguez não acidental (voluntária ou culposa), ou seja, quando o agente embriagou-se, sem a intenção ou consentimento de atropelar e matar. Pelo menos, até surja uma prova lícita e inequívoca durante a persecução penal. Caso contrário, sempre haverá culpa consciente (homicídio culposo - art. 302, inc. V, do Código de Trânsito brasileiro).
Leiam a íntegra do voto do Ministro Luiz Fux, no julgado do HC 107.801/SP, no STF.
Atualizem-se!
Forte abraço.